quinta-feira, 4 de abril de 2013

O coração peludo do mago às avessas.


Duas horas foi o tempo que levou para que conseguisse tirar a coisa de dentro de si, duas horas inteiras...

   Uma sensação gloriosa de libertação se apoderou dele... era como se o mundo se alargasse para os lados, levando suas bochechas e sua boca para um sorriso que não podia se configurar como apenas um.
   E pensar em todos os questionamentos, todas as dores, todas as lágrimas: tudo se desvanecera parecendo que nunca nem existira, como a catapora da infância que não deixa sequelas quando passa. Ah, que infantil fora, aprisionado em um sentimento nobre que o transfigurara em um ridículo, dependente afetivo da babaquice de alguém! Todos os momentos em que sacrificara o “eu” pela realização plena do “nós”... Todas as palavras que engolira para tomar o devido cuidado que o outro nem tomava! Todos os minutos malditos em que se trabalhara arduamente para ser uma pessoa melhor e entender aquela pessoa que talvez nem pensasse nisso, além de cobrir com racionalidade e argumentação aquilo que as palavras nunca puderam alcançar... puf! Simples assim, foram-se como o pássaro selvagem que fica trancado na gaiola e parte sem nem olhar pra trás. 
Apegado! 
Era o que ele era, e dizia isso sorrindo, que transformação! E, melhor ainda, não sofrera mais que duas horas, nunca fora tão fácil retirar de si aquilo que insiste em ficar! Sentia-se livre como se não tivesse nem corpo, e segurava aquilo nas mãos como um troféu. Finalmente arrancara do peito aquilo que sangrava como se toda a lágrima tivesse resolvido sair de uma vez só.

Orgulhoso de ser o que era, foi até a cozinha e apanhou na geladeira o vidro que mantivera gelando. Sem dó nem piedade, jogou aquela coisa dentro e tampou com a ferocidade que a alegria nos dá. 
Vitória! 
Mas onde ia colocar? 
Não pensara nisso antes, não com a dor que cegava seus pensamentos. 
Garagem. Na garagem? Se o vizinho de cima encontrasse ia achar que ele assassinara alguém. Bom, pra quem afinal devia satisfações? Não, mas isso pesaria seu clima, perigava a polícia baixar e trazer um escândalo para a sua vida. Como explicaria um coração dentro de um pote? Se não fosse preso, seria temido nas ruas, poderia ser tachado de psicótico, bruxo, exótico... não, aquilo não poderia ficar na garagem.
   Preocupado, pensou em colocar no quarto mesmo, mas, ao dar aquela olhada crítica, pensou bem e concluiu que não conseguiria acordar e dormir com aquilo a brilhar carmesim. Sala, cozinha e banheiro eram opções tão viáveis quanto dar aquilo de presente pra alguém. A pureza que corria em seu ser não o permitira cogitar a possibilidade de dar aquilo para quem originara sua dor, muito menos em jogar fora algo que fora ferido tão prematuramente e que com certeza feriria e seria ferido mais vezes.
   Sentou-se, em crise, segurando o pote que nem mais gelado estava. O que fazer com seu coração? Muitas ideias passavam pela sua cabeça, uma mais improvável que a outra. Sem saída, ante o medo de sofrer pela dúvida, como sempre, lentamente, deixando os pensamentos virem na esperança de pescar um que o fizesse mudar de ideia, colocou o pote no chão, abriu-o, apanhou o coração, foi subindo sua mão por baixo da camisa ensanguentada e o reposicionou no lugar em que estava minutos atrás... 

   A dor fulminou-o de imediato, o coração bombeava para o seu sangue as lições que o marcariam pra sempre, como toda dor de amor. Ele compreendeu, ainda que tentasse fechar os olhos, que fora apanhado pela força da lei implacável da humanidade. Fugir de seu coração não era uma opção.

3 comentários:

  1. "Todos os momentos em que sacrificara o “eu” pela realização plena do “nós”... Todas as palavras que engolira para tomar o devido cuidado que o outro nem tomava! Todos os minutos malditos em que se trabalhara arduamente para ser uma pessoa melhor e entender aquela pessoa que talvez nem pensasse nisso, (...)"

    Cara, me vi nesse trecho! Já fiz a bobagem de tentar suprimir o "eu" em prol do bem maior, o "nós", que no final nem existia - bem, existia só na minha imaginação.

    Adorei o final, em que apesar da dor, a pessoa decide continuar com seu coração, pulsando - mesmo que doa. Fugir disso não é opção. Mas a dor, mesmo grande, ensina.
    Parabéns, belo conto!

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  2. O pior sofrimento é o pela dúvida. Não sofrer por antecipação.
    Deixar vir para ver o que acontece.

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  3. SENSACIONAL. Vontade de conversar com você.

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